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segunda-feira, 31 de março de 2014

Noé: os caminhos do cinema e da religião Como prova a recente polémica em torno de "Noé", não existe um equilibrio fácil entre arte e religião.

Noé: os caminhos do cinema e da religião


No início do trabalho conjunto em "Noé", o realizador Darren Aronofsky fez uma promessa a Russell Crowe: "Nunca te vou colocar num barco com o feitio de casa, de túnica, sandálias e com um par de girafas a aparecer atrás de ti".

Décadas após os "Dez Mandamentos" e o "Ben-Hur" de Cecil B. DeMille, Aronofsky renovou a tradição do grande épico biblíco produzido para as massas num grande estúdio. No entanto, transformou-o numa parábola sobre o pecado, a justiça e a piedade.

Apesar de grande parte do seu "Noé" ser fiel às Escrituras, nada tem a ver com a versão de livros para colorir que muito de nós vimos quando éramos crianças. "Na primeira vez que li a história, tive medo", afirma o realizador. "Pensei: então e se não sou suficientemente bom para entrar na arca?".

No conjunto, é um projeto improvável: um filme de 130 milhões de dólares baseado numa história da Bíblia, sediado num grande estúdio e dirigido por um cineasta respeitável ( "Cisne Negro" e "A Vida Não É Um Sonho") que poucos veriam no papel de um DeMille dos tempos modernos.

Nos meses que antecederam a estreia a 28 de março, "Noé" viu-se inundado por controvérsia, com alguns conservadores a reclamar que o filme não era suficientemente fiel ao Velho Testamento e que Noé fora retratado de forma deturpada, nas palavras de Aronovsky como "o primeiro ambientalista".

"Noé" representa uma mudança extrema em relação à produção independente "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, que surpreendeu Hollywood com uns inesperados 612 milhões de dólares de box office, em 2004. Desde então, Hollywood desenvolveu cuidadosamente laços com as comunidades religiosas - a Sony e a 20th Century Fox têm previstas estreias que pretendem agradar aos evangélicos norte-americanos.

Mesmo assim, o debate em torno de "Noé" vem provar que pode ser difícil satisfazer os gostos de crentes e não-crentes, e que alcançar o cruzamento certo entre arte, negócio e religião é uma tarefa que tem tanto de risco como de potencial retorno.

Muito está em jogo, e não envolve apenas "Noé" e o seu distribuidor, a Paramount Pictures.


  O regresso do épico bíblico
Em dezembro próximo, a Fox estreia "Exodus", de Ridley Scott, com Christian Bale no papel de Moisés. Após "O Filho de Deus", estreou há uma semana o drama religioso "God's Not Dead" e na Páscoa a Sony tem previsto o lançamento do filme de inspiração religiosa "Heaven is For Real".

O mesmo estúdio tem ainda em desenvolvimento uma versão da história de Cain e Abel com vampiros, um projeto a que está ligado Will Smith.

A Lionsgate está a anunciar uma prequela de "A Paixão de Cristo" sobre Maria Madalena, co-produzida pelo pastor Joel Osteen, o líder de uma das mega-igrejas evangélicas dos EUA.

Jonathan Boch afirma que, quando fundou a empresa Grace Hill Media, em 2000, com o objetivo de ajudar ao diálogo entre os estúdios de Hollywood e as comunidades religiosas, as duas partes "não se conheciam". Desde então, filmes como "As Crónicas de Nárnia" e "Um Sonho Possível" beneficiaram desse diálogo com os fiéis.

"Ao longo de 15 anos vimos a comunidade religiosa passar de uma condição de quase pária a segmento importante do mercado", acrescenta Boch, que foi consultor da produção de "Noé". "Na minha cabeça, o que vemos agora é um novo renascimento onde os maiores artistas estão a contar as maiores histórias de sempre".

Hollywood abandonou o épico bíblico enquanto género precisamente quando filmes como "A Maior História de Todos os Tempos", de 1965, se tornaram em grandes fracassos de bilheteira. Apesar desse facto, o revivalismo é consequência de novas tendências na produção cinematográfica. Figuras como "Noé" são reconhecidas globalmente e, por isso, mais fáceis de promover. Não há licenciamento a pagar e, na maior parte das vezes, as histórias incluem muitas oportunidades de incluir vistosos efeitos especiais.



Um filme para "toda a gente"
"Noé", que será convertido em 3D para aproveitar o entusiasmo por estas versões que subsiste em mercados emergentes como a China, ou a Rússia, é, talvez, a mais antiga história de um apocalipse e fascinou Aronofsky ao longo da sua infância, em Brooklyn.

O realizador recorda-se de um poema sobre Noé que escreveu aos 13 anos e o elogio de uma professora que o encorajou a tornar-se num contador de histórias.

Ao contrário de "A Paixão de Cristo" que foi feito essencialmente por cristãos e destinado a cristãos, Aronofsky afirma que o seu "Noé" é para "toda a gente".

"É errado falar da história de Noé dessa forma, em termos de crente versus não-crente porque creio que se trata de uma das histórias mais antigas da humanidade", diz. "Pertence não só à tradição Judaico-Cristã e Islâmica. Toda a gente no planeta conhece a história de Noé".

A história do Génesis tem apenas algumas páginas e inclui mais detalhes sobre o tamanho da arca (que Aronofsky respeitou) do que informações acerca da personalidade de Noé. Sabemos que recebeu instruções de Deus - "ofendido" no coração por aquilo em que a humanidade se tinha transformado algumas gerações após a criação - para construir uma arca e enchê-la de dois exemplares de cada animal. Depois do dilúvio, Noé surge embriagado e expulsa Ham, o seu filho - tudo pistas para Aronofsky sobre a dor que Noé sentia pelo fardo que carregava.

A Paramount procurou a aprovação de líderes religiosos, consultou estudiosos da Bíblia durante a pré-produção e conduziu testes com público - durante os quais o estúdio e o realizador discutiram sobre a versão final do filme antes de chegarem a uma trégua aparente.

Mesmo assim, as críticas iniciais ao filme cresceram online com base naquilo que o vice-presidente da Paramount, Rob Moore, diz ser uma antiga versão do guião (de Aronofsky e Ari Handel), que nem sequer foi usada. "Foi um percurso muito interessante", diz Moore. "Foi largamente noticiado, sobretudo com base em especulações, mexericos, ou dados desatualizados."



O difícil equilíbrio entre arte e religião
Quando acabou de ver o filme, Jerry A. Johnson, presidente da National Religious Broadcasters (associação norte-americana de canais religiosos), pressionou a Paramount a incluir um aviso nos materiais de promoção. Moore concordou e, dessa forma, o estúdio passou a advertir que "foram tomadas liberdades artísticas".

"Como artista, o Darren foi algo susceptível quanto ao significado do aviso, por podermos estar a marcar o filme como sendo isto, ou aquilo, mais cedo do que seria desejável, em vez de permitirmos que fosse o público a decidir", diz Moore. "Mas houve tanta gente preocupada". "Assim, a controvérsia termina para a grande maioria das pessoas", conclui o vice-presidente do estúdio.

Johnson continua a ter sentimentos contraditórios em relação a "Noé" e apelida o filme de "um grande mais, menos": não merece nem o boicote que a Igreja Católica Romana pediu quando da estreia de "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, nem o apoio incondicional das igrejas que chegaram a enviar autocarros cheios de gente para irem ver "A Paixão de Cristo".

"Os pontos fundamentais da história estão corretos", diz Johnson. "É tão contra-cultura falar de pecado, de bem e mal, e particularmente da ideia de julgamento, na América, ou no Ocidente de hoje - e isso é um aspeto tão sério deste filme".

Johnson tem várias reservas e acrescenta que "os ideais sobre o ambientalismo extremista são um problema." Aronofsky não concorda.

"Está escrito na Bíblia que devemos cuidar do jardim", contrapõe o realizador. "Afirmar que não existe uma faceta ecológica na história de Noé quando ele salva os animais não faz qualquer sentido, na minha opinião."

O fundador da Picturehouse, Bob Berney, que enquanto presidente da Newmarket Films distribuiu "A Paixão de Cristo", afirma que o equilíbrio entre liberdade artística e fidelidade às Escrituras é difícil. "É como uma armadilha, é preciso ter muito cuidado", diz Berney. "Ao mesmo tempo, são filmes e têm de ser muito bons. Creio que o público religioso, os cristãos, continuam a querer ver filmes bons e empolgantes".

Toda esta polémica - com opiniões positivas e negativas - pode acabar por ser um chamariz e Moore crê que "Noé" obterá a maior parte das suas receitas fora da América do Norte, mesmo depois de saber que o filme foi banido em muitos países islâmicos onde é proibido criar representações de profetas. Tanto ele como Aronofsky acreditam que têm uma história rica em ambições artísticas do lado deles.

"É curioso como, durante algum tempo, a conversa se transformou num controvérsia sobre a interpretação literal, diz Aronofsky. "O que é uma interpretação literal quando se trata de fazer uma representação artística do texto? Será o David de Michelangelo uma interpretação literal do aspeto de David?"

rtp.pt

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