Da
esquerda à direita, os operários Rafael Rocha Gomes, José Edval da
Silva e Evaldo Barbosa Araújo (BBC Brasil), entrevistados na reportagem
da BBC em outubro, disseram ter sido submetidos a maus tratos na
construção da usina Biocom (Foto: BBC)
O Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciou o grupo empresarial
Odebrecht por, segundo o órgão, manter 500 trabalhadores brasileiros em
condições análogas à escravidão na construção de uma usina em Angola.
De acordo com a ação, iniciada após uma reportagem da BBC Brasil
revelar denúncias de maus tratos na obra, a construtora teria praticado
ainda tráfico de pessoas no transporte de operários até a usina Biocom,
na província de Malanje.
A denúncia, entregue na sexta-feira à Justiça do Trabalho de Araraquara
(SP) pelo procurador Rafael de Araújo Gomes, pede que a Odebrecht pague
uma indenização de R$ 500 milhões por danos coletivos aos
trabalhadores. O procurador notificou a Polícia Federal e o Ministério
Público Federal para que dirigentes da empresa e de suas subcontratadas
respondam criminalmente.
A Odebrecht disse à BBC Brasil que só pronunciaria sobre o caso após
ser notificada judicialmente. Normalmente, a notificação judicial ocorre
alguns dias úteis após o Ministério Público protocolar a ação. Mas, com
as interrupções de serviços públicos ocorridas por conta dos jogos da
Copa do Mundo, esse prazo pode vir a ser ampliado.
Três empresas do grupo Odebrecht são rés na ação, que tem 178 páginas e
envolveu extensa investigação: a Construtora Norberto Odebrecht (CNO), a
Olex Importação e Exportação e a Odebrecht Agroindustrial (antiga ETH
Bioenergia).
Segundo ação do MPT, trabalhadores foram
submetidos a 'condições degradantes de trabalho'.
Na foto, área externa do refeitório (Foto: BBC)
Passaportes retidos
Em dezembro de 2013, a BBC Brasil publicou uma reportagem em que
operários diziam ter sido submetidos a maus tratos na construção da
usina Biocom, entre 2011 e 2012. Dezenas de fotos e vídeos cedidos à
reportagem mostravam o que seriam péssimas condições de higiene no
alojamento e refeitório usados pelos trabalhadores.
Os trabalhadores afirmaram ainda que funcionários que trabalhavam na
segurança da empresa impediam que eles deixassem o alojamento e que
tinham seus passaportes retidos por superiores após o desembarque em
Angola. De acordo com os operários, muitos adoeciam - alguns gravemente -
em consequência das más condições, e pediam para voltar ao Brasil.
Alguns dizem ter esperado semanas até conseguir embarcar.
Segundo a ação do Ministério Público do Trabalho, braço do Ministério
Público da União, 'os trabalhadores, centenas deles, foram submetidos a
condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana,
e tiveram sua liberdade cerceada, sendo podados em seu direito de ir e
vir'.
Os funcionários, diz a denúncia, "foram tratados como escravos
modernos, com o agravante de tal violência ter sido cometida enquanto se
encontravam isolados em país estrangeiro distante, sem qualquer
capacidade de resistência".
Após voltar ao Brasil, dezenas de operários entraram na Justiça contra a
Odebrecht e suas subcontratadas na obra. A Justiça tem reconhecido que
eles foram submetidos a condições degradantes e ordenado que sejam
indenizados.
O MPT diz que, embora os trabalhadores não fossem empregados da
Odebrecht, mas de empresas subcontratadas pela construtora – entre as
quais a Planusi, a W Líder e a Pirâmide –, a responsabilidade pelas
condições na obra era inteiramente da Odebrecht, conforme definido nos
contratos entre as companhias.
Tráfico de pessoas
A denúncia lista uma série de ilegalidades que, segundo o MPT, teriam
sido cometidas pela Odebrecht no envio dos trabalhadores a Angola. De
acordo com o órgão, as empresas subordinadas à companhia recorreram a
agenciadores ilegais ('gatos') para recrutar operários em diferentes
regiões do país, especialmente no Nordeste. A prática, diz a denúncia,
constitui crime de aliciamento.
Após o recrutamento, segundo a denúncia, ocorria outra irregularidade:
em vez de solicitar à embaixada de Angola vistos de trabalho aos
operários, a Odebrecht pedia vistos ordinários, que não dão o direito de
trabalhar.
Para obter os vistos, segundo o MPT, a Odebrecht "desavergonhadamente
mentiu à embaixada de Angola", dizendo que os operários viajariam ao
país para "tratar de negócios" e permaneceriam ali menos de 30 dias
(limite de estadia do visto ordinário). No entanto, diz a Procuradoria,
as passagens aéreas compradas pela Odebrecht previam a volta dos
trabalhadores em prazos bem superiores a 30 dias.
Segundo o MPT, a empresa recorreu ao esquema para "contar com
trabalhadores precários e inteiramente submetidos a seu jugo, incapazes
de reagir ou de reclamar das condições suportadas, impossibilitados de
procurar outro emprego, e que sequer pudessem sair do canteiro de
obras".
A prática, segundo o MPT, sujeitou os trabalhadores a graves riscos em
Angola, inclusive o de prisão, e violou tratados internacionais contra o
tráfico humano.
Ratificado pelo Brasil em 2004, o Protocolo de Palermo engloba, entre
as definições para a atividade de tráfico, o recrutamento e transporte
de pessoas mediante fraude ou engano para fins de exploração em
"práticas similares à escravatura".
Dinheiro público
Segundo a investigação do MPT, contratos celebrados entre a Odebrecht e
suas subordinadas na obra mencionam que haveria empréstimos do BNDES
(Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) à construção. O
BNDES, porém, disse à BBC Brasil que jamais financiou a obra.
Em junho de 2012, o Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior
decretou sigilo sobre todas as operações de crédito do BNDES a Angola e
Cuba.
Entre 2006 e 2012, quando os dados ainda eram públicos, o BNDES
destinou US$ 3,2 bilhões (R$ 7,2 bilhões) a obras de empresas
brasileiras em Angola. A Odebrecht, maior construtora brasileira e maior
empregadora privada de Angola, onde opera desde 1984, abocanhou a
metade desses financiamentos.
'Círculo íntimo'
Primeira indústria de açúcar, eletricidade e etanol de Angola, a Biocom
é uma sociedade entre a Odebrecht, a estatal angolana Sonangol e a
empresa Cochan. Segundo o jornal português Público, o dono da Cochan é o
general angolano Leopoldino Fragoso do Nascimento, um dos homens mais
próximos do presidente angolano, José Eduardo dos Santos, no poder desde
1979.
A usina, que custou cerca de R$ 1 bilhão, deve ser inaugurada até o fim deste ano.
Embora a Biocom tenha sócios angolanos, o MPT diz que, desde 2012, a
Odebrecht tornou-se sócia majoritária da usina e "passou a administrá-la
como dona". Segundo o órgão, ao se associar à Cochan, a Odebrecht
buscou contemplar o "círculo íntimo" do presidente angolano no
empreendimento e mascarar que a usina, anunciada à população local como
angolana, é na verdade brasileira.
Como punição pelos atos, a Procuradoria pede que a Odebrecht seja
multada caso mantenha práticas ilícitas, indenize os trabalhadores
afetados em R$ 500 milhões e deixe de receber empréstimos de bancos
públicos. A ação pede ainda que a companhia pague multa no valor de 0,1%
a 20% do seu faturamento anual.
Segundo o MPT, o caso requer "uma punição absolutamente exemplar", para
que a companhia não se sinta encorajada "a repetir as mesmas condutas
no futuro".
globo.com